Mimetismo em patologia
Por Gil Pena
Mimetismo
O termo mimetismo no diagnóstico patológico é novo para mim. Creio que ilustra a similaridade de apresentação entre duas entidades distintas, causando confusão diagnóstica. No seu sentido biológico mais estrito (sem ser autoridade no assunto), creio que o mimetismo corresponde à capacidade dos seres vivos adquirirem características que permitam que ele se confunda com o meio (camuflagem) ou com outros seres (mimetismo batesiano, mimetismo mulleriano).
No contexto patológico, nem sempre são bem definidas ou individualizadas as entidades, na forma como se apresentam. O que define o diagnóstico é o julgamento patológico, e nossas impressões iniciais podem resistir a mudanças, conforme o impacto com que se registrem e a facilidade com que se recuperem as nossas experiências diagnósticas prévias.
A figura acima ilustra esse tipo de situação1. Os desenhos transmutam gradativamente do rosto de um homem, para a figura de uma mulher. Se nos é apresentado inicialmente o homem ou a mulher, nossa tendência é interpretar as figuras intermediárias com base nessa experiência, não nos sendo possível perceber as nuances da interpretação alternativa (da mulher ou do homem) na figura.
Essa interpretação pode provar-se errônea, quando lidamos com o processo diagnóstico patológico. Esse erro de interpretação pode surgir de aspectos cognitivos do diagnóstico, associados com falhas de percepção, heurística e vícios, que coletivamente são referidos como disposição cognitiva para responder2. A ancoragem precoce e o vício de confirmação desempenham um papel importante nesses processos diagnósticos equivocados:
- Ancoragem: a tendência de prender-se a percepção em aspectos salientes da apresentação inicial do caso, muito precocemente no processo diagnóstico, falhando-se em ajustar essa impressão inicial à luz de informações posteriores. Essa disposição cognitiva de resposta está também ligada ao vício de confirmação.
- Vício de confirmação: a tendência de procurar evidências de confirmação para suportar um diagnóstico, ao invés de procurar por evidências não conformes, para refutar ou excluir essa hipótese embora essa estratégia seja mais persuasiva e definitiva.
Nem sempre compreendemos bem o que nos leva a pensar (ou não pensar) em um diagnóstico. A transferência analógica consiste na associação que fazemos de determinadas características do caso, com casos anteriores que já vimos ou descrições de casos na literatura. O caso que vamos diagnosticar pode apresentar semelhanças em diferentes níveis com os casos armazenados: contexto (serviço, médico que enviou o caso); o conteúdo (órgão ou sistema envolvido); elementos superficiais (dados demográficos, apresentação clínica) e a estrutura profunda (processo/lesão subjacente). Embora casos possam apresentar semelhança em qualquer nível, uma solução adequada só é possível se conseguimos mapear satisfatoriamente os elementos de sua estrutura profunda. O desafio de transpor o conhecimento de um caso a outro, requer estratégias para reconhecer o processo básico, a lesão subjacente, apesar das diferenças no contexto, conteúdo e/ou elementos superficiais.3
Relato de Caso
Quando recebi a peça cirúrgica do caso que apresento aqui, devo admitir que me impressionou a apresentação macroscópica do caso.
Tratava-se de um segmento de tecido muscular esquelético, com uma lesão brancacenta, com bordas expansivas e área de degeneração cístico-hemorrágica central. A lesão tinha um tamanho de 3,5 cm, no maior eixo, e fora retirada de uma garota, com 6 anos de idade. Era uma lesão de crescimento rápido (cerca de um mês) e veio com o diagnóstico clínico/de imagem de sarcoma alveolar.
Essa apresentação macroscópica realmente foi decisiva no caminho diagnóstico que tomamos em direção ao diagnóstico de sarcoma. Em linhas gerais, todos sabemos que lesões de partes moles de localização profunda tendem a ser mais agressivas, assim, seguindo essas mesmas linhas gerais, devíamos estar diante de um caso de sarcoma. Quando veio a histologia, ainda impregnados por essa sensação, notamos uma proliferação fusocelular um pouco frouxa, desorientada, com algumas células apresentando núcleos grandes. O estroma tinha áreas mixóides. Havia várias figuras de mitose. Como esses elementos podem constituir características de um sarcoma, e ainda impressionados pela lesão profunda, intramuscular, chegamos mesmo a formular um diagnóstico de sarcoma fusocelular.
A imuno-histoquímica, neste caso, foi decisiva, pela oportunidade de re-olharmos o caso. Observamos uma expressão difusa de actina de músculo liso, sugerindo uma população celular miofibroblástica. Com isso, percebemos algumas nuances morfológicas, que não havíamos atentado anteriormente, como ausência de atipias significativas, o extravazamento de hemácias, o aspecto que é comparado à disposição de células em meio de cultura, dando possibilidade ao diagnóstico de fasciite nodular.
Fasciite nodular[4]
A fasciite nodular é uma lesão relativamente comum na patologia tumoral de partes moles. É geralmente descrita como uma lesão pseudossarcomatosa, denotando o risco que de seja diagnóstica como sarcoma, dado o seu crescimento rápido, a densa celularidade, a atividade mitótica alarmante e crescimento microscopicamente infiltrativo. Apenas em 10-15% dos casos, os pacientes referem história prévia de trauma, mas considera-se a lesão como um processo reparativo, proliferativo, não neoplásico. A maioria dos pacientes apresenta uma história de massa solitária, de crescimento rápido, algumas vezes dolorosa. Ocorre em ampla faixa de idade, desde crianças a idosos. A localização mais usual é no antebraço, ocorrendo também com certa frequência no tronco. A maioria dos casos ocorre no subcutâneo, mas pode aparecer também na derme, na fáscia profunda e no músculo esquelético. Algumas formas de apresentação são peculiares e recebem designação específica, como a fasciite intravascular e a fasciite craniana. É descrita também a localização em articulações e na cavidade oral.
O aspecto macroscópico é de uma lesão nodular, como o próprio nome sugere, circunscrita, com tamanho em geral inferior a 3,0 cm no seu maior diâmetro (no nosso caso, a medida da lesão supera esse valor). A superfície de corte tem aspecto variável, conforme a matriz da lesão (mixóide ou colagênica), podendo ser macia, gelatinosa, ou firme. Degeneração cística central, como observamos, pode ocorrer.
A fasciite nodular é uma lesão bastante celular, com população de células alongadas, largas, lembrando fibroblastos imaturos, arranjados em fascículos curtos, irregulares. Há certa variabilidade no tamanho e forma das células, algumas mais fusiformes, outras estreladas. Os núcleos são grandes, vesiculosos, mostram pequeno nucléolo, com mitoses numerosas, mas nenhuma delas atípica. Nas lesões precoces, as células estão embebidas em uma matriz rica em mucopolissacárides, com uma pobreza de colágeno. O aspecto lembra fibroblastos em meio de cultura ou aqueles em áreas de tecido de granulação (como em bordas de lojas cirúrgicas, nas peças recirurgia para ampliação de margens da mama). A delicadeza do estroma permite rasgos na textura, comparados a lenço de papel rasgado. Gradativamente, há um aumento na deposição do colágeno, com menor número de mitoses e matriz mixóide menos proeminente. O aspecto pode lembrar cicatriz quelóide. Os vasos são delicados e extravazamento de hemácias é comum. Células inflamatórias são também freqüentemente observadas. A imuno-histoquímica recapitula as características miofibroblásticas das células, com expressão de vimentina, actina músculo-específica e actina de músculo liso. As pesquisas de S-100 e desmina são negativas.
O diagnóstico diferencial é extenso e duas importantes lesões têm de ser consideradas: as fibromatoses e os sarcomas fusocelulares.
A fibromatose geralmente mostra população de células uniformes, brandas, em fascículos infiltrativos, em meio a estroma colagênico, com escassas figuras de mitose.
A maioria dos autores salienta que o sarcoma fusocelular é geralmente uma lesão profunda, mas como o nosso caso bem testemunha, essa não é uma característica distintiva. Em geral são maiores e mais celulares, e têm arranjo celular mais ordenado. Os achados citológicos de malignidade devem estar presentes. A presença de mitoses atípicas e necrose são também características mais afeitas aos sarcomas.
A fasciite nodular é tratada com excisão marginal, sendo muito rara a recorrência.
Referências bibliográficas
- Heuer Jr, Richards J. – The Psychology of Intelligent Analysis. Center for the Study of Intelligence – Central Intelligence Agency – 1999.
- Crosskerry, P. – The Importance of Cognitive Errors in Diagnosis and Strategies to Minimize Them. Acad. Med., 78: 775-780, 2003.
- Pena, G. P. & Andrade Filho, J. S. – Analogies in Medicine: valuable for learning, reasoning, remembering and naming. Adv in Health Sci Educ 15(4):609-19, 2010. DOI 10.1007/s10459-008-9126-2
- Rosenberg, A. E. – Pseudosarcomas of soft tissue. Arch Pathol Lab Med, 132: 579-586, 2008
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